Quem já havia perdido o benefício antes da aprovação da lei, no entanto, seguiu na batalha judicial para recuperar o direito. A Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência (TNU) julgou que a Lei Renato da Matta, como foi batizada a legislação, em homenagem ao ativista da causa, não teria efeito retroativo. Mas também foi decidido que pessoas que, até a data da promulgação do texto, ainda recebiam a chamada Mensalidade de Recuperação — o prolongamento do pagamento do benefício por 18 meses após a cassação — continuavam cobertas da isenção e, portanto, deveriam permanecer aposentados. Mesmo assim, o INSS não reabilitou a maioria dessas aposentadorias.
— Não estamos falando de jovens, mas de aposentados há 30, 40 anos. Os chamamos de sobreviventes da Aids, porque viveram numa época em que os poucos medicamentos existentes eram extremamente tóxicos, e causavam envelhecimento precoce e várias sequelas. Nas revisões, peritos do INSS viam baixa carga viral em alguns exames de sangue e davam alta — explica a advogada Patricia Diez Rios, que cuidou de muitas ações de pessoas contestando as cassações. — Muita gente foi parar na rua ou abandonou tratamento. É uma bola de neve enorme.
Muitos dos casos culminaram em ações judiciais. Houve sentenças favoráveis, mas a maioria seguiu sem o direito garantido.
Em 2020, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul entrou com uma ação para reativar todas as aposentadorias cassadas. Há quatro meses, um acórdão da justiça federal determinou o retorno do benefício a quem recebia a Mensalidade de Recuperação até a promulgação da lei, um grupo estimado, por associações que militam no tema, estimado em 3.500 pessoas .
O INSS interpôs embargos de declaração, e o processo segue em trâmite. A justiça entendeu que é preciso aguardar o prazo de 60 dias úteis antes de fazer valer o acórdão. A procuradora federal Ana Paula Carvalho de Medeiros, responsável pela ação, afirmou que se a medida não for cumprida após o prazo, será exigida a execução judicial em novo pedido.
— Várias pessoas que perderam o benefício nos procuraram. Eram pessoas com dificuldade muito grande de se reinserir no mercado de trabalho, por todas questões que vivem. Para a pessoa estar aposentada por invalidez ela já passou por auxílio doença, o que demonstra que a saúde é debilitada, e o legislativo reconheceu que portadores de HIV não deveriam se submeter a essas revisões — diz a procuradora.
Procurado, o INSS não se manifestou e não informou dados sobre a quantidade de aposentadorias cassadas.
Morador de Porto Alegre, Roberto Ackermann espera que a ação do MPF consiga reaver sua aposentadoria, cassada em 2018 numa das fases do pente fino. Diagnosticado com HIV em 1990, ele conseguiu trabalhar até 2005, quando começou a notar problemas de locomoção no serviço como perito de sinistro.
Eu sentia muitas dores na perna e não sabia o que era. Um dia, a perna não obedeceu e eu bati de carro atrás de um ônibus. Sorte que estava devagar — lembra Ackerman, de 56 anos, que segue tomando o coquetel de remédios e tem a carga viral hoje controlada.
Após o acidente, ele passou por exames e então foi descoberta uma doença desmielinizante — que ataca o sistema neurológico — posteriormente confirmada como esclerose múltipla, distúrbio decorrente do HIV. Ackermann passou dois anos recebendo auxílio doença, mas em 2007 a perícia retirou o benefício. Ele entrou na justiça e, em 2008, sua aposentadoria por invalidez foi determinada.
Dez anos depois, na revisão do benefício, Ackermann conta que a consulta durou apenas cinco minutos. Cinco minutos para a avaliação de corte da aposentadoria. Ackermann diz que o INSS não o encaminhou para o setor de reabilitação profissional, medida adotada em outros casos de “curados”. Ele acionou novamente a justiça. Perdeu.
Vidas no limbo
Com a Lei Renato da Matta, ele voltou a pleitear o direito, mas a justiça considerou que a causa era de “coisa julgada”, ou seja, mesmo assunto da ação anterior, e não foi possível novo processo.
— Estou no limbo, vivo com muita dívida e recebo ajuda de amigos. A sorte é que tenho um apartamento, no momento com um quarto alugado, mas vou precisar vender. Não tenho condição de trabalhar, se eu caminhar, sinto muitas dores — explica Ackermann, que também desenvolveu depressão grave. — Parei de tomar o antidepressivo por falta de dinheiro, e só sigo com o tratamento com infectologista no SUS.
O “limbo” citado por Ackermann é ainda mais grave no caso de Fernanda Falcão, de 59 anos. Mesmo tendo recebido auxílio-doença por oito anos, ela nunca conseguiu a aposentadoria por invalidez e ficou sem nenhum dos benefícios, após o pente fino de 2017.
Estou vivendo de rifa, de ajuda de amigos. Só quero meu direito à saúde, sigo todo tratamento, me cuido, mas tem dias que meu corpo não aguenta — explica Falcão, que chegou a recuperar o auxílio por um ano, em 2020, por decisão judicial, mas que foi revertida ano passado.
— Já fiz trocentas mil perícias. Não te olham como ser humano, só te encaixam numa tabela — diz.
Jornalista de formação, ela está fora do mercado de trabalho desde 2011, quando os efeitos dos medicamentos viraram um entrave. Naquele ano, através da justiça, já que o INSS não concedeu o benefício de imediato, ela conseguiu receber o auxílio doença.
— Me aposento, por idade, em 2024, mas como vou sobreviver até lá? São 11 anos fora do mercado de trabalho e muitos dias acordo mal, por efeitos do remédio.
Soropositivo e ativista da causa, Renato da Matta hoje trabalha na gerência de Aids da Secretaria municipal de Saúde do Rio. Após receber auxílio doença por seis anos, ele teve alta e não conseguiu sua aposentadoria por invalidez. Apesar de celebrar que sua lei conseguiu recuperar o benefício de muitas pessoas, ele lamenta que outros tantos ainda enfrentem um calvário.
— O pente fino pegou gente aposentada há 25 anos. Como a pessoa fora do mercado há tanto tempo, arrebentada pelo tratamento, vai voltar ao emprego? Não houve essa preocupação — protesta da Matta, que diz ser um “absurdo” precisar redigir uma lei “óbvia”.
Da Matta dix que a supressão do benefício trouxe estrago e custo social enormes :
— Muita gente morreu após perder benefício, até por suicídios. Alguns tiveram falha terapêutica porque não tomavam mais remédio, e outros ficaram sem renda para comer. É uma economia burra, porque o custo que o INSS coloca em cada recurso judicial e os gastos do estado com UTI são maiores do que se pagassem as aposentadorias.
(MATERIA DO O GLOBO DE HOJE 04/09/2022)
https://oglobo.globo.com/.../tres-anos-apos-lei-que...