Com a descentralização das políticas públicas de aids, iniciada no ano 2000, e o fim do convênio do Brasil com o Banco Mundial, o governo federal passou a delegar responsabilidades que eram suas para os gestores estaduais e municipais, que, muitas vezes alheios aos agravos e ao impacto social causados pela epidemia, por total ignorância ou simples negligência, fizeram vista grossa à doença.
O desmonte dos serviços de atenção especializado em HIV/aids existentes passou a ficar à mercê das transições de governo. Atualmente, o Ministério da Saúde busca reestruturar as políticas públicas de aids, reconhecendo ser esta uma prioridade e entendendo que as antigas estratégias já não possuem a mesma eficácia, tese com a qual concordamos, respaldados numa vivência cotidiana.
Enquantoo governo entende que novas estratégias precisam ser implementadas para a reestruturação destas políticas no país, surge uma celeuma: algumas lideranças do movimento nacional de luta contra a aids, mesmo reconhecendo a gravidade do problema e a necessidade de ações efetivas, discordam das formas de atuação escolhidas pelo governo, como o oferecimento de testes de HIV por ONGs e em farmácias e o tratamento como prevenção.
Todas essas discussões são ricas e pertinentes. Todavia, ao meu ver, faltam reflexão sobre a gravidade do que se discute e objetividade no que se pretende alcançar. Além disso, a cristalina intromissão do fundamentalismo religioso da Câmara dos Deputados nas questões de ordens técnica e estratégica da vigilância em saúde, cuja competência é atribuição exclusiva do Ministério da Saúde, gera impacto negativo na retomada das ações conjuntas entre governo e sociedade civil. Nota-se, ainda, uma aparente falta de desprendimento político-partidário e ideológico por parte de algumas lideranças da sociedade civil envolvidas nas negociações com o governo.
O paradigma maior do então Programa Nacional de DST e Aids, capitaneado no início da década de 1990 por Lair Guerra e José Stalin Pedrosa, ativista na luta contra a aids, tinha como máxima a participação efetiva da sociedade civil organizada na construção das políticas, bem como a atuação das ONGs/aids para complementação das ações que o governo se reconhecia incapacitado de realizar sozinho. Nasceram, então, as ações conjuntas desenvolvidas por governo e sociedade civil organizada, com o puro interesse coletivo de enfrentamento da epidemia. Os resultados da parceria renderam bons frutos, como sabemos.
Negar o valor desse paradigma, nos deixando influenciar por correntes políticas de mérito duvidoso, cuja moralidade vê-se diariamente estampada nos jornais e nas redes sociais, é tentar reescrever a história em papel de baixa qualidade. É apagar três décadas de ações conjuntas que beneficiaram centenas de milhares de brasileiros.
A precarização das relações trabalhistas, ora invocadas por algumas lideranças do movimento nacional, jamais passou pela mente da grande maioria das pessoas que se dedicaram ao enfrentamento da aids, uma vez que, atuando como voluntários, não se identificaram como prestadores de serviços, mas como cidadãos que, literalmente, lutam pela vida após serem atingidos direta ou indiretamente por uma epidemia virulenta e mortal.
Diga-se de passagem, quem conhece a natureza jurídica da expressão “prestador de serviço” pensa duas vezes antes de utilizá-la. No final do ano passado, no calor das discussões sobre novos paradigmas para enfrentamento da epidemia, chegou-se a ouvir ameaças de ações judiciais contra as ONGs que aderissem à proposta governamental para realização de testes de HIV nas comunidades. Entendemos tal ameaça ser fruto da emoção de quem, provavelmente, não visita enfermarias onde ainda se internam pessoas com aids para atenção especializada, tampouco conhece a qualificação técnica das ONGs/aids sobreviventes da “guerra às bruxas”, nem os desafios enfrentados por elas para continuarem atuando nas comunidades de base.
Mesmo inebriado pela emoção, não é lícito cercear as liberdades das ONGs/aids tentando impedi-las de atuarem no exercício de suas missões institucionais e de decidirem o que devem ou não devem fazer, com vista ao bem comum e ao interesse público, observada a licitude de seus atos.
Afastado o calor da emoção momentânea e observado o disposto no Código Civil Brasileiro no que tange à matéria, impedir o exercício ou cercear o direito de uma ONG na realização de sua missão institucional seria uma afronta ao direito de associação, cláusula pétrea da Constituição de 1988.
Aprendemos com Betinho: “Quem tem aids, tem pressa”.
Pensar, discutir, decidir e agir são passos fundamentais a qualquer iniciativa, ensinava Platão há cerca de 2.400 anos.
Ao nosso julgo, as celeumas são benéficas, mas, quando fogem do objeto principal mergulhando numa eterna discussão, seguram as iniciativas no âmbito do “discutir”, enquanto o “agir” – gerador de resultados concretos – fica prejudicado em detrimento da população e das pessoas vulneráveis ao HIV.
Foi nesse diapasão que, entendendo e respeitando divergências e em harmonia com sua missão institucional de garantia de direitos às PVHA – lato sensu, que o Grupo Pela Vidda-Niterói aceitou entrar num empreendimento para oferecer testes rápidos anti-HIV às comunidades específicas, após primorosa avaliação da proposta apresentada pelo Ministério da Saúde.
Consideramos ser este mais um aprendizado e um desafio, mesmo sabendo que, além dos recursos recebidos do Ministério da Saúde para concretização do trabalho, o Grupo Pela Vidda-Niterói precisaria utilizar recursos próprios. Assim, no legítimo exercício do seu direito de livre iniciativa, a instituição anuiu à proposta do Ministério, reiterando que respeita e reconhece a legitimidade e a importância das divergências na construção das boas políticas públicas.
Para tal anuência, além da estrutura física e do corpo técnico dos quais dispõe, a entidade decidiu buscar ou criar metodologias mais dinâmicas e objetivas, realizar aconselhamento pré e pós-teste, consoante à eficiência e à eficácia do trabalho que se propôs a executar. Fazendo uso da expertise adquirida em ações anteriores, pensou também em providências para reduzir o impacto emocional nas pessoas que apresentarem resultados positivos durante os testes.
Por outro lado, antes mesmo de assinar a “Carta de Acordo” com o Ministério, a diretoria executiva do Grupo fez consulta à assembléia-geral da instituição, reuniu-se com a coordenação de Vigilância em Saúde e com o Programa Municipal de DST e Aids de Niterói, avaliou a sua capacidade instalada e o potencial da rede sócio assistencial do município, de modo a estabelecer relações de referência para definição do fluxo de encaminhamento, garantia do monitoramento, da assistência à saúde e dos direitos das pessoas com testes confirmatórios concluídos.
Divergências sempre existiram e existirão. Entretanto, não devemos fugir da responsabilidade social que pesa em nossos ombros na busca da valorização, da integração e da dignidade do doente de aids, bem como, na contribuição com o governo – visando o puro interesse público — no controle e no combate à epidemia de aids na nossa comunidade e no país, longe de interesses pessoais, partidários ou correntes ideológicas.
Entendemos ser esta uma satisfação pública e esperamos que seja recebida como uma demonstração do irrefutável respeito e da admiração nutridos pelo Grupo Pela Vidda Niterói aos nossos companheiros integrantes do governo e do movimento nacional de aids que divergem ou concordam conosco nesta iniciativa.
Inácio Queiroz é presidente do Grupo Pela Vidda/Niterói