
Alguns renomados infectologistas fazem parte dessa leva, incluindo a doutora Márcia Rachid, pessoa a quem sempre dediquei profunda consideração, tanto que tenho três edições de seu Manual de HIV/AIDS. Ao longo deste século mantivemos três conversas em eventos, a primeira foi em 2001, no Fórum Latino Americano de DST/AIDS no Rio de Janeiro em 2001, quando eu estava em uma cadeira de rodas por conta das recentemente diagnosticadas (tardiamente) osteonecrose e osteoporose com fratura de fêmur. Naturalmente que os efeitos colaterais foram o assunto, alguma coisa estava acontecendo fora do normal em nossos organismos e me lembro muito bem que ela se mostrou atenta e sensível ao tema, o que me deu uma certa tranqüilidade, os doutores estavam nos acompanhando e teriam uma solução. Doce, ou melhor, amarga ilusão.
Anos mais tarde, creio que em 2005, reencontramo-nos em um congresso de infectologistas em Santos, para o qual já havia ido com minha metralhadora cheia de mágoas. Um ativista amigo meu tinha me informado que Dra. Márcia teria dito, em uma apresentação, que a culpa pela não adesão ao tratamento era das pessoas com HIV que não queriam tomar remédios. Para minha tristeza ela repetiu a fala durante uma aula patrocinada pela Abbott com lanchinho e tudo, cerca de três mil médicos e meia dúzia de ativistas pingados, eu na primeira fila. Quando foi aberto o debate, sou medalhista olímpico em levantamento de braço, fui o primeiro e iniciei expondo minha surpresa pela fala, afinal ninguém quer tomar remédio, nem ela e nem os médicos presentes. Que aderir o tratamento vai além do querer, vai da situação familiar, afetiva, trabalhista, de moradia e um sem número de fatores que fazem com que a pessoa tenha ou não adesão. E fiz uma pergunta sobre mutação em pessoas aderentes. Ela me respondeu à questão sobre mutação, fez uma longa pausa com direito a uma profunda expiração e declarou para mim e para seus colegas de profissão:
- Com relação à adesão, Beto, ao ouvir minhas palavras vindas de sua boca eu percebi o equívoco que estava cometendo, retiro o que disse e peço desculpas.
Foi um aplauso generalizado e eu retomei minha confiança naquela miúda mulher super fashion, acessível, que estava atenta a nossa situação e que era capaz de rever seus conceitos publicamente, honradez que poucos conseguem ter. Novamente, parece que foi tudo ilusão. No Vivendo do Rio de Janeiro realizado no último final de semana ela foi protagonista de um acirrado debate com as pessoas vivendo. Na véspera eu havia encerrado a tarde perguntando a ela se não era muita arrogância científica considerar a AIDS, de recente conhecimento e crescente complexidade, como uma doença crônica, ao que ela ficou de responder na mesa do dia seguinte.
Essa resposta iniciou a tal mesa e, para sobressaltos e crises de neuro toxoplasmose de minha parte, ela fez uma série de defesas da cronicidade da doença e que ela teria o mesmo perfil do diabetes (foi aí que minha mão começou a retorcer com a toxo). Que não via problemas junto ao INSS, afinal conseguia aposentar, em seu consultório, todos os pacientes que ela quisesse e que eles não morriam, quem está morrendo são as pessoas que não tomam os medicamentos, quem os toma está vivendo perto da normalidade. Claro, não fui o único a reagir a esse festival de discrepâncias em relação ao SUS que conhecemos ao SUS que vivemos no dia a dia. Com meus queridos Renato e Josimar alternamos nossas falas e contrapusemos todos os argumentos com estudos, pesquisas, exemplos e demonstrações, ao que ela permaneceu impassível em sua posição, ressaltando que a AIDS é crônica degenerativa como o diabetes, novamente o clichê da banalização.
Pois é, parece que o SUS que atende os pacientes de Dra. Márcia não é o mesmo no qual se tratam as demais pessoas com HIV. O nosso SUS faz com que os pobres mortais enfrentem demora de meses para agendar consultas e exames, não consigam vagas na rede hospitalar, não tenham acesso a medicamentos para os eventos adversos e, muitas vezes, nem para as oportunistas.
O nosso SUS é a cara da riqueza...
Por Beto Volpe